Tentativa, erro, tentativa

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Quando ás vezes ocorre uma sequência de coincidências num curto espaço de tempo parece que algo exterior a nós se deu ao trabalho de nos conduzir com pouca subtileza a um raciocínio pré definido, e quase acreditamos que há alguma maquinação superior envolvida.

Numa semana há pouco tempo atrás fui abordado por um casal amigo vindo de Israel e que conheci durante o WWOOF porque tencionam fixar-se cá e na altura tinham gostado de um local em Odemira auspiciosamente caracterizado pela ausência tanto de rockets como de Haredim.
Falamos um pouco das especificidades de viver em Portugal e do modo como pretendiam integrar-se através da produção agrícola e turismo e também do local que acabaram por escolher, numa encosta contígua ao Vale de Santiago.
A escolha acabou por ser fácil porque descobriram no local outros oito expatriados israelitas que tinham escolhidos terrenos vizinhos para se fixarem e a vinda deles serviria para intensificarem a junção de esforços e despesas.

Esta coexistência levanta-me sempre alguns receios - quando se escolhe um terreno algo tão importante ou quase como  a água é a vizinhança. Quando se está a comprar o terreno é fulcral, quando se quer partilhar é um teste de diplomacia embora quase nunca o aparente no entusiasmo inicial. Felizmente o pragmatismo deles parece levá-los numa direcção mais próxima de um condomínio do que de uma comunidade no sentido coabitacional.

Casa principal em Janas, quando a visitei ao descer de bicicleta (á esquerda) pelo litoral


Poucos dias depois durante uma conversa com mais um membro deste microcosmo de excêntricos (na verdade é um elogio) sei que a ecoaldeia de Janas, comunidade no sentido coabitacional que visitei há pouco mais de um ano, estava agora, depois de um período de incerteza de há uns meses, a "recrutar" pessoas do resto do país para continuarem o seu projecto. Estão em Sintra e são um sítio interessante para visitar, especialmente agora que consolidam a sua actividade, mais centrada na formação e na relação com a cidade. Acho que é uma opção que faz mais pela sua viabilidade do que uma noção mais purista de viver de e para a natureza exclusiva e autonomamente.

No final da semana as duas coisas cruzaram-se quando a meio d' Os Operários de Raul Brandão (que aprecio mais como cronista), encontro o capítulo "Uma Comuna no Alentejo", sobre a  Comuna da Luz do anarquista tolstoiano António Gonçalves Correia (cuja frase "A revolução é a minha namorada" ficou como uma improvável herança literária). Foi a primeira experiência de uma comunidade anarquista em Portugal e procurou pôr 14 pessoas a viver segundo princípios igualitários, do vegetarianismo e do amor livre.

Independentemente do enquadramento ideológico o projecto é muito interessante: os residentes trabalham para o seu sustento e troca com a comunidade, através da componente agrícola e artesanal (calçado), a auto-construção garante habitação para todos, as tarefas são partilhadas e eventualmente incluiria depois uma escola básica e oficinal aberta.
Das poucas imagens que encontrei na internet sobre a Comuna da Luz, infelizmente Brandão não era também fotógrafo
Fonte 1 e fonte 2

Se em 2014 uma comunidade assim é relativamente bizarra a sua concretização em 1917 é totalmente explosiva, especialmente porque (apenas) um dos seus membros era uma corajosa professora. Inevitavelmente a experiência foi sendo esmagada por todo o tipo de pressões, que inclui a acusação de envolvimento numa conspiração para assassinar Sidónio Pais. Provavelmente o desiquílibrio entre géneros e a inexperiência inerente a algo deste tipo teria aniquilado a comunidade de qualquer forma, e dois difíceis anos depois foi-se a Luz.

Existiu a escassos quilómetros do local onde os israelitas desenraízados estão neste momento a estabelecer-se.Depois do fim da Comuna da Luz foi fundada nova e igualmente fugaz tentativa pelo seu líder intermitente, chamada Comuna Clarão, a escassos 10 quilómetros de Janas também em Sintra.

Transmiti esta curiosidade a quem me apresentou a estes locais mas não suscitou grande interesse. Alguns locais parecem destinados a acolher ciclicamente certos cenários e os actores improvisam novos guiões com maior ou menor consciência do material de base.
Por mim, no papel sempre secundarizado mas de total privilégio de assistente na plateia, estou ansioso por visitá-los no próximo Verão.