Ratinho por uns tempos [III]



Toda a frugalidade do modo de vida na quinta dos Märkl contrasta com a comida que comem, central a tudo o que rege a vida quotidiana. O objectivo fundamental é a auto-subsistência total, que atingem nos produtos vegetais e animais através da produção própria, complementada pela troca (por exemplo do sal grosso ou do azeite, uma vez por ano). A actividade da queijaria paga tudo aquilo em que não se pode evitar o vil metal.

Regem-se também por algumas regras simples que estão implícitas à paixão e orgulho que têm pela sua autarcia, apesar de todas as suas contradições: os ingredientes são sempre o que está mais fresco e em maior quantidade (só comem na época); atacam as conservas entre Outubro e Março (não cheguei a provar ou a ver mais do que as sobreviventes do ano anterior); matam e comem um animal que é "esticado" por várias refeições (quase uma semana um borrego, 3 dias um frango); metade das refeições são (ovo-lacto) vegetarianas.

É possível que seja do apetite do trabalho intenso mas foram inquestionavelmente algumas das semanas em que melhor comi na minha vida e em que felizmente recuperei algum peso dos quase 8 kg que perdi por motivos de saúde nos dois meses anteriores, quando receava que a minha estadia como voluntário poderia agravar esse problema.



A rotina alimentar do Verão:

- O pão é feito no forno a cada 2 dias, uma mão de massa é embrulhada num pano e enfiada na gaveta para fermentar e juntar à massa seguinte. O pão é sempre diferente e sempre excelente porque o hiperactivo M. aborrece-se e põe lá azeitonas, figos, oregãos, presunto e o que mais lhe apetecer. Faz-se ao fim da tarde, fermenta até ao jantar, vai para o fogo a seguir à refeição, de manhã ainda está quente.

- Os sub-produtos da produção de queijo como o soro vão para fazer manteiga fresca (de longe a melhor e mais leve manteiga que já provei, branquíssima) ou requeijão, a moeda de troca principal com os vizinhos e que vai sempre temperado com ervas frescas e limão. As duas formas de aproveitamento do soro são feitas todos os dias, alternadamente e por vezes já depois da meia-noite. O requeijão fresco é de longe melhor que o seu queijo curado na minha opinião mas a sua comercialização formal é-lhes interdita por causa das exigências sanitárias. Em vez disso é moeda de troca com vizinhos, por tabaco por exemplo.

- O sumo de eleição é um concentrado de uva que procurei convencê-los a vender também com o queijo mas não acreditaram que fosse assim tão bom. Não conheço qualquer mistela de pacote que lhe faça frente e eles não fazem ideia da pouca concorrência que têm por isso desconsideram o que fazem. Pediram-me para deixar de beber uma garrafa por dia (que tinham oferecido mas que não pensavam de que viesse a gostar tanto) porque também a usam para troca.

- Todos dias ao final da tarde vai-se espreitar a horta e recolhe-se o que está demasiado grande, caído, estragado ou em excesso para a alimentação da noite dos animais e uma porção de cada tipo de vegetal (leguminosa, couve, raíz, fruta) para o jantar e almoço do dia seguinte. Ao jantar coze-se ou assa-se, no almoço do dia seguinte salteia-se.

- Fora uma vez ou outra no Inverno nunca fazem sopa, que consideram uma incompreensível obsessão portuguesa. Como português foi a única coisa de que senti falta, e com um pão com queijo é uma refeição em si mesma, fácil e rápida de fazer e que aproveita absolutamente tudo, desde a água a restos de legumes e carne. "Comida de bébé", dizem os anfitriões.

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